domingo, 10 de março de 2013

de tinta e aritmética

Quatro Casas Decimais
por André J. Torres

Chovia sobre os pés de Isaac. Chovia por toda Céu Azul. Óleo ordinário estalava na panela sobre o fogareiro. Fuligem escapava para a atmosfera estéril. Isaac vestiu o macacão cinza e bebeu seu café sem gosto. Devia ser quarta, devia chover por toda a Céu Azul. Passava das nove, por certo. Gotejava. Sacou o relógio de bolso e constatou que de fato passava das nove. Deu mais um gole, ralo, frio, e sem gosto. Outro e mais outro. Chovia, o espaguete estalava e bombas foguete se incendiavam do outro lado do Pacífico. No porto da frente fizeram soar o apito. Olhou o mar pela persiana. Couraçados flutuantes cruzavam o oceano turvo em sacrilégio de diesel e gás à santíssima trindade da física newtoniana, desafiando as leis da inércia e gravitação numa gigante blasfêmia de aço voador. 
Serviu-se do macarrão. Chovia. 

Isaac sentou-se diante da máquina de escrever, uma Remington 2001 com teleradiola e prensa fotográfica. Apertou o botão na base e pediu ao redator positrônico que redigisse uma historieta à Italiana sobre o ataque das aranhas de Marte. Pois não! Assim, enquanto Isaac tratava da goteira, a Máquina compilava suas matrizes literárias em ortográficos x, y e z, não com sete, mas com doze algoritmos aleatórios de narração - De Shakespeare a Shelley, de Cantor a Pascal, diagramando em válvulas e alavancas uma obra prima de tinta e aritmética.

Em pouco mais de duas horas o datilógrafo autômato do século XX bateu um manuscrito de quarenta páginas ilustradas, seu herói extraterrestre, o vilão maquiavélico e a donzela em apuros, com contracapa e dedicatória. 

Um épico instantâneo com precisão de quatro casas decimais.

Isaac grampeou as folhas e assinou a autoria no local indicado. Estava pronto. Voilá! Sentia-se esperançoso com a nova publicação, ainda que a última sobre o garoto e seu cachorro não tenha se destacado nas livrarias de autotexto. Com a ocupação de Paris a remessa de novelas francesas tardaria a chegar a Nova Iorque, dando aos programautores da capital alguns meses de vantagem.

Uma pomba pousou no peitoril da janela. O movimento brusco para afugentá-la acabou por derrubar a chávena no chão. Ajoelhou-se, e só então percebeu o vazamento. Diesel do reservatório escorria por de trás da mesa, formando uma poça sobre carpete. O circuito de cronologia entrou em curto, danificando os módulos de conjugação verbal do capítulo cinco em diante. Suspirou. Voltava a gotejar. Cobriu a máquina com jornal e telefonou para o antiquário, e em alguma lixeira entre o apartamento e o elevador Isaac se desfez do livro. Entrou no elevador. Devia ser quarta.


O papel na lixeira chamou a atenção de Winston, um sem-teto erudito numa noite de inverno em Manhattan. "As Aranhas de Marte". O autor não lhe soava familiar, ainda assim procurou um banco menos molhado e definhou a ler. Tamanha foi sua surpresa quando no sexto capítulo a epopeia fantástica deu lugar a um relatório técnico dos vários eventos históricos dos últimos anos. E então dos anos por vir. E dos próximos, e dos seguintes, e assim por diante. A queda do Reich, a bomba atômica, o muro... Por Deus! O mundo precisava saber. Alguém precisava saber. Mas como? Winston era só um homem invisível com um cobertor, meia garrafa de gim e uma terrível coincidência de quarenta páginas.

Juntou-se aos seus amigos acionistas e juntos fizeram uma fogueira. Passava das nove. Chovia.

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