quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Se vacas malhadas dão doce de leite

Estamos nessa época do ano em que anoitece cedo e amanhece tarde que eu nunca entendi direito. Só eu e o velho Scooby, por três dessas longas noites. Garotas não são permitidas.

Botas afundando nas folhas secas. Estômago dá uma roncada inominável. É, o cheiro do assado deve estar animal. Acho que já enchi o saco dessa porra.

Ponto infinitesimal no canto do olho. Alavanca pra baixo desliza sobre o trilho até bater no final, solta, puxa a correia e estala. Ou pelo menos são esses os sons, que dão a sintaxe de engatilhada. Espera... Pulso, tambores, tambor. Respira, silêncio, assovia. Fecha o olho direito, prende a respiração... e puxo.

Revoada de pássaros.

Chão. Lambidas na cara, eca. Cabeça explodindo, não me levanto - e como poderia? Não com uma filha da puta duma arcada enferrujada de trinta dentes cravejada no meu pé e tornozelo. Caralho, CARALHO, CARALHO. Tento puxar a memória de volta, mas a cabeça dói, demais. A bota segurou boa parte do estrago, mas não, nem ferrando dá pra pegar a estrada desse jeito. Merda, talvez tenha quebrado também. E vamos precisar de uma caralhada de antitetânica.

Nunca vi uma dessas fora dos desenhos do Pernalonga e Patolino.

RÁPIDO, puxo a espingarda pra perto - pra que? Acabou a bateria (ficou ligada esse tempo todo... quanto tempo foi isso?), e não é como se ela fosse me proteger... do que? Duma alcateia de carne e osso? Não, não é como se ela fosse fazer isso. Anyway, não tem lobos no Brasil, né? Deve ser coisa de filme no nosso inconsciente compartilhado, tipo frio no Natal. Mas de fato temos outros animais igualmente mortais. A onça pintada, por exemplo, é considerada por muitos o tubarão branco do continente (li isso numa Revista Recreio, uma vez). Pra minha sorte ela deve estar extinta. E o lobo-guará? Agora não lembro se ele é só folclore ou só outro bicho em extinção.

Ah, e, falando nisso...

Olho pro lado, e pro outro. Só o Scooby se lambendo, a mochila, e mais nada.
-Cadê ela, garoto?
Latidos... Microgravidade morna. Neblina - não, vapor. Cerâmica pintada de vermelho. Gotejar, latidos, pulsação... Estou na banheira. Numa bad.

Inspiro de volta as memórias da mata: eu desarmando a armadilha com o canivete, arrancando os dentes que ficaram, me arrastando até a cabana com os pulmões queimando de frio (pensei que fosse enfartar), e desabando aqui, com força só pra abrir a água quente. Preciso chamar ajuda. Não, eu já fiz isso. Ana e os irmãos dela tão vindo. Mandei mensagem pra ela. Quarenta minutos tops. Agora é esperar.

Ainda to de calça, como o Super-Homem de roupa na banheira da Amy Adams (frase que ficou muito parecida com uma resposta de Detetive - reparar demais nas frases pode entregar um estudante de letras se em uma missão secreta). Encontro meus fones de ouvido branquinhos, sem fio, da Apple. Que filho da puta leva os fones pruma caçada? É uma pena, de qualquer jeito. Decido que essa experiência deixou oficialmente de ser engrandecedora. 

-Yo.

Débora. Sentada no balcão da pia, diante de mim.
-Mas que porra! Da onde você veio?
-Disseram no grupo das meninas que você talvez tivesse morto ou algo assim, e eu era a única nave da Federação no quadrante. Desculpa não ter batido. Mea cupa.

Viro os olhos o máximo possível sem ficar cego.

-Você ta de moto?
-To. Já deixei na garagem.

-E ai, cadê?
Levanto a perna da água.
-Eu sempre te subestimo, Saul, mas você continua me surpreendendo com sua incrível capacidade de fazer merda.
-Vai se ferrar.

Ela vai pro outro aposento. Abro o ralo e a torneira, deixo a água zoada descer pelo encanamento de ferro debaixo do assoalho pra algum lugar longe. Limpo as feridas com sabão. Talvez fique irado depois que cicatrizar.

Visto o roupão de Arthur Dent e tropeço até a sala.
-Você só tem pratos descartáveis?
-É.
[...]
-Por que?
-Nada não.

Roupas pelo assoalho. Reviro a jaqueta amarela. Num bolso tem uma chave, com um tamagochi de chaveiro. Yep, isso não é meu. No outro, meu esqueiro. Meu esqueiro? Me é bastante familiar, pelo menos. Uow, e maconha, que agora é minha. No outro, enfim, o celular, com 3% de bateria. Deixo carregando na tomada do lado do colchão inflável. Pulo nele, mas não tão indiscriminadamente, pra não estourar. Não sou mais um fluorescente adolescente.

CA, RA, LHO, O ASSADO. Corro (essa não é exatamente a palavra) pra cozinha, separada do quarto por uma linha imaginária sob a maior viga do teto. Realmente, não queimou. O forno elétrocp inteligente baixou a temperatura manteve o calor residual. Que época pra se estar vivo, não? Seria da hora continuar assim.

Débora estava se servindo das batatas. Ela achou uma Heineken no minibar, o que a fez olhar pra mim, com aquele ar de "é, esse é definitivamente o seu tipo de cara". Abriu na boca, cuspiu na pia e pulou indiscriminadamente no colchão, roubando meu lugar e cobertor.

-Foi namorar, perdeu o lugar.

Pego a forma - rápido demais, empolgado demais - e queimo o dedo - ai. Eu não paro de perder HP nessa porra. Fatio a carne, boto num pratinho, pego talheres de jogos minimamente combinando - "with over fifteen different kinds of cutlery, yeahh". Derramo molho por cima, abro uma Coca-cola verde e sento à mesinha de centro.

-Por que vocês terminaram?
-A gente não terminou.

Ela come as batatas com uma mão e mexe no celular na outra.

-Eu vi ela no Tinder.
-A gente só ta dando um tempo.

Ela ia acender um cigarro, mas não chega à vias de fato.
-Eita.
-O que?
-Tem uma geada chegando. Termina isso e vamo vaza.

Num virar de página estamos do lado de fora. O vento da mata faz as janelas baterem e turva a luz da única lâmpada na varanda. Vou trancar a porta e percebo que o bichinho virtual quer alguma coisa, provavelmente comida. Puxo a fitinha dele. Scooby fica bem atrás de mim, no conciso porta-malas. Olho pra fora. Atualmente no mundo só existimos nós e a varanda, debaixo de um céu negro e uma garoa negra, no meio de uma floresta programada pra ficar dezesseis horas sem cor.

"Você chegará ao seu destino em uma hora".

-Ei, você não tinha um nome idiota pro seu carro?
-Black Light.
-Que idiotice. Aposto que só você chamava ele assim, certo?
-Tem algo de social nos nomes próprios.
-Coloca o cinto.

Ela da a partida. Estamos oficialmente nos afastando, aumentando progressivamente a distância entre nós e tudo de errado nessa porra. Simultaneamente assim se vão meus planos de treinar Scar Tissue e Zephyr Song no baixo, entre outras coisas com a mão esquerda, ah, e de aperfeiçoar minha costela e meus hambúrgueres. Abro meu inventário, que no caso é minha mochila: Computador, o canivete/abridor de pacotinhos de ketchup que salvou minha vida; e um saco de Doritos, até então reservado para madrugada de MMORPGs. Trágico, trágico.

Abro o note e o aplicativo, pra tentar uma última vez trazê-la de volta. Nada. Maldita hora que o Danilo me emprestou esse bicho dos inferno. Eu devia ter pego o drone de controle remoto. Pera, do que eu to falando? Eu podia ter ido pescar na beira do lago. Foda-se. Abro o Doritos. O aroma de pedra no rim invade o semi-novo classe-média. O diliça.

-Deixou ela fugir?
-Deu algum ruim. Talvez tenha acertado alguma parte vital, sei lá.
-Você mija fora da privada, Saulinho. Eu te conheço. Cê tinha que ver esse lance da fimose.
-Vai toma no seu cú.
-Meu cu é vitamina, como tu e tua prima.

-Por favor, Débora, cala a boca e me deixa morrer em paz.

Chegamos na porteira. Débora aperta o controlezinho, ela abre. Nós passamos, ela fecha. Vejo a cabana, o único ponto distinguível, desaparecer na mata. Raios e trovões na nossa cola. É melhor chegarmos logo no asfalto.

Submergimos.


X tempo depois acordo com um monstro de aço de duzentas mil toneladas cruzando nosso horizonte. A geada alcançou a gente. Engraçado que o trem ta nem ai pra ela. Estamos no começo do novo álbum do Paramore - a não ser que esteja no aleatório. Eu tenho que parar com essa de ficar inconsciente toda hora. Eu dormi ou desmaiei? Sintomático ou coincidente? Ela nos trouxe pra perto dos trilhos, claro, onde a estrada de terra tem que ser mais plana. Ainda assim, com um tranco violento, paramos. Meu lado afunda. O pneu estourou.

Lett troca as marchas, enterra o pé no acelerador, mas tudo que acontece é que derrapamos um pouco, sem sair do lugar. O motor urra, os ponteiros baixam de novo. Por um segundo, só ouvimos o gelo golpeando o casco e o vento arranhando os vidros. Atolamos.

-Você tem uma lanterna?
Tenho, no meio as tralhas do estepe. Acho e passo pra ela.
-Pula pra frente. Eu vou empurrar, você acelera, e depois que sairmos dessa você me ajuda a trocar o pneu, ok?

-Agora não é hora pra você se sentir emasculado. Deixa pra quando eu te humilhar no Street Fighter.
Pulo pra cadeira do capitão, e pauso aquela droga.

-QUANDO EU GRITAR, VOCÊ ACELERA.

O grito não vem. Invés disso, despressurização. Luz, oxigênio e calor sugados pela matéria escura, juro que posso ouvi-los se esvaindo no vácuo oscilante em que ecoam as descargas elétricas e o apito cada vez mais distante. Foi minha porta, a chapa de metal com vidro elétrico que separava o interior familiar de tudo aquilo que se abriu por ela.
-É melhor você vim ver isso.

Essa história, como os melhores jogos "estilo Resident" de survival horror, tem mais de um final, que obviamente depende de como você a joga. Se você ficou no carro com a ruiva, bolou um e ouviu After Laughter em looping até o sol raiar, acaba aqui. Mas se você, assim como eu quis em qualquer momento descobrir que porra tá acontecendo, então continue lendo.

Contorno a lataria, a gravidade enterrando minhas botas na lama. Terraformar Vênus seria mais suave que tornar esse pesadelo habitável.

Uma das memórias mais antigas que tenho é uma mistura de imagens: Uma fazenda, um fogão a lenha, uma chaleira de ferro no fogo, e uma voz sábia dizendo "Presta atenção que o leite não parece que vai ferver até que ele ferve".

-Saulo - não havia dose, rodela de limão ou ironia em sua voz. A lanterna se apagou, ela deu umas batidas e a acendeu de novo. Parecia real até ela iluminar o pneu dilacerado por uma armadilha de urso, daí eu já não sabia mais.


Acabou a luz.
-Tem velas na dispensa - eu acho - deixa que eu pego. Me empresta seu esqueiro - e então lembrei que tinha um no bolso da jaqueta.

Arrasto a perna - fria, exausta e encharcada - e esbarro no edredom, fazendo a Heineken cair no chão e quebrar. Ruiva se aproxima com uma vela acesa. Depois passou a chama pra outra, e pra outra, que ela coloca dentro de canecas e espalha por ai. "Você trancou a porta?". Desviei dos cacos e tranquei.

Abro o chuveiro. Droga. Mesmo sendo a gás, deve precisar de eletricidade pra alguma coisa.

-A Ana e os meninos...?
-A tempestade levou meu sinal embora.
-Você pelo menos tem bateria? A minha acabou.
-Quase nada, mas tenho um carregador portátil na bolsa.

Esperamos mais de hora no carro até a maré se acalmar. Nesse meio tempo discutimos todas as possibilidades de quem ou o que estava espalhando essas coisas por ai. "Isso não é brincadeira. Não é uma aventura de rpg com seus amigos virgens". Ela é a última pessoa no mundo que pode dizer isso. Só vi ela jogando uma vez, como mestre - no ano novo, na casa da praia - e as descrições dos lugares, personagens... era tão real que parecia de verdade.

-Vai carregar seu celular, depois me ajuda a procurar algum sinal pra gente chamar a polícia.

Fui, e enquanto isso fiz outras coisas também. Proatividade, qualidade indispensável em entrevistas de estágio. Troquei de roupa e dei um camisetão pra ela se trocar. Limpei o barro e refiz os curativos no banheiro. Quando voltei, lembrei que tinha deixado umas salsichas fervendo. A água por pouco não transbordou. Por que, Deus, por que?

Tinha um rio aqui por perto, não tinha? Lembro de alguma coisa com "Rio Pequeno", que nem o busão. Não, um rio não, uma nascente, no morro, que depois entra na terra. Pergunta: Rios subterrâneos transbordam? Segunda pergunta: Essa pergunta é óbvia?

"Manual", pensou a voz do Léo na minha cabeça, "de instruções. Tem vários macetes pra fazer as coisas funcionarem. O piso aquecido, por exemplo, não funciona se a calefação tiver no verão. Minha Tia até escreveu um papel com essas fitas. Tipo um manual de instruções, haha. Não sei onde que ela guarda isso, mas relaxa que se qualquer coisa não tiver pegando é só me mandar uma mensagem".

Foi só bater o olho na parede de fotografias e ver a folha de fichário.

-Débora.

Gerador à todo vapor. Luzes acesas. Fracas, mas acesas. O wi-fi liga, mas não conecta.

-Aqui diz que a Jo-Jo guarda etanol no barracão. Vou lá buscar.
-Nem fudendo. Aqui é o nosso Quarto do Pânico, e você é a Kristen Stewart com um ataque de asma. Eu vou.
-Ok. Pera, é a Kristen Stewart em "Quarto do Pânico"???
-Yep, e o Jared Leto também.

Fico olhando no sofá colado na janela até ela dobrar a trilha. Agora o céu ta limpo como se nunca tivesse chovido antes. No meio dele uma lua nova sorri.

Olho bem. Sua boca está escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar.

Ela passa. Em quatro segundos ela passa, de quatro, quatro caudas que são tubos de ordenha mecanizada erguendo-na do solo. Eu sei que é. Parece um eclipse, o verme rastejando, mas não é lua cheia. Se fosse ela não sairia da toca. Mesmo sendo um puta predador, o segredo é não subestimar os outros. Ela aprendeu isso como? Do jeito mais longo, darwinista, ou tem dedo da programação nisso? Não é como se os caras tivessem feito todo um estudo etológico e coisa e tal. Já imaginou o tampinha do... como que é o nome mesmo? O filme do barbudinho que chama o Weasley pra fazer o teste de Turing na robô. Enfim, essa galera não vai ao zoológico. Só se for pra chamar criancinhas pra entrar numa van. Esse é o problema de Tony Starks como o Elon Musk: falta churros na vida deles. É por isso que eu tenho certeza que ele é um vilão de Kingsmen.

Eu perdi muito sangue, e fechei bem o corte. Mas algo nessa visão críptica, labiríntica e aracnídea (palavras que me dariam uns quinhentos pontos no Scrabble) abriu a ferida em mim. De dentro pra fora sinto minha sanidade sendo tirada num exame de sangue. Jesus, sempre me borrei de medo pra tirar sangue. É o que tenho mais medo nessa vida. E é o que sinto ela fazer comigo, só que de dentro pra fora, primeiro provocando uma hemorragia interna à distância, depois me tomando de canudinho.

Warszawa, do Bowie, na real é Varsóvia em Polonês. Consigo ouvi-lá tocando - ou seria Art Decade? - e ela andando, se movendo como a morte rastejante, com poucos frames por segundo, quase em stopmotion. Quatro poses aparentes, e quatrocentas celas, cheias de gente. Ela passa lá no fim da trilha, vindo da onde tem a encruzilhada, indo pra onde tem o lago - e o barracão. O cano duplo de espingarda balançando no tórax e os dois cilindros de ar comprimido pendendo na base são novos, mas não resta dúvida, o brilho do pelo é inconfundível. O pelo dela é autêntico. Natural.

Mas o pior, o pior de tudo, o pior de tudo é o sorriso igual o da lua. O sorriso do gato da Alice.

Rezo pra que ela não tenha me visto aqui. Acho que não viu. Roupas. Enquanto me troco, converso comigo mesmo. Você tem que pegar a moto e fugir daqui. Chamar ajuda. Parou de chover, mas a estrada de terra continua fudida. E nem fudendo, eu não deixaria o Scooby aqui, nem a Débora.

Espingarda - zero de bateria. Merda, merda. Quantos disparos um carregador portátil em formato de Pokébola pode me dar? E quanto tempo pra carregar cada um deles? É algo que vamos ter que ir descobrindo no caminho.

Lanterna, canivete, jaqueta estranhamente não familiar.

Abro a porta.

Não dá pra ir numa missão de resgate de chinelo.

Descubro que a parte mais difícil de me convencer a isso vai ser colocar meu pé dentro de algo.
Transcorre-se um minuto na primeira tentativa. Lembro do manual. Atrás do espelho do banheiro, ansiolíticos? Não. Morfina. Engulo com água da torneira enquanto enfio o pé na bota. É isso.

-Scooby, fica.

Mergulho lá fora. Quer dizer, parece lá fora, mas eu sei que há outra preposição pra definir esse campo irregular formado por pontos cegos, desníveis e armadilhas de urso. Talvez encima, se tomarmos por referência o suposto rio subterrâneo sob meu pé bom e meu pé ruim. Ou subterrâneo, dependendo da onde ela veio. Na verdade ela veio do nosso mundo mesmo. Seu design veio de São Francisco, seus componentes vieram de ex-repúblicas soviéticas e foram montadas na China, e depois vendida pela internet, e me emprestou pelo final de semana. Mas por onde ela passou enquanto o forno inteligente conservava meu assado com molho de laranja? Em que buraco, árvore seca ou caverna ela entrou pra sair desse jeito? Nesse sentido, aqui pode ser o "fora".

Árvores, sombras. Devo gritar pra Débora? O quão rápido ela pode correr?
Na ida viemos ouvindo um podcast sobre uma galera que busca tesouros enterrados. No Paraguai tem muito disso inclusive. É considerado até folclórico - essa palavra de novo? Lembro de ter falado ela ultimamente. Aqui no Sul também. Alguns descendentes de senhores de engenho enterraram suas fortunas. Diz a lenda que a alma deles poderia ficar assombrando.

Será que por aqui costumavam ter fazendas? Acho que não. Se não não seria "reserva", certo? Porque ai teria sido tudo desmatado, e não teria o que reservar depois.

Cheiro de leite.

Ou pode ser também que eles replantaram tudo e daí virou uma reserva. Será? Na verdade as árvores são bem gigantes. Em um século elas ficam desse tamanho? Um século é muito tempo, mas pra algumas paradas nem tanto.

Tenho quase certeza de que esse rastro é mesmo de leite. Leite morno, direto da teta da vaca. Praticamente um queijo de cabra. Eca. Estou no alto do morro. Vejo a luz do barracão lá embaixo acesa. Uns trezentos metros depois começa o lago. No meio dele ela paira.

Me jogo numa moite - indiscriminadamente - ai. Olho pelo periscópio do rifle. Ajusto o zoom. Na base dele pendem dois cilindros de ar comprimido, formando juntos aquele pistão de abate que o franjinha de Onde os Fracos Não tem Vez usa pra matar geral. Sorry, spoiler alert.
-Eu já vi Hentai suficiente pra saber como isso vai terminar.

Uma barrinha de bateria cheia, e outra com uns 80%, subindo lentamente. Como qualquer carabina de pressão, de ar comprimido, CO2, enfim, que não usam cartuchos explosivos, a elétrica só da um tiro por recarga. A fidelidade da simulação nunca foi tão indesejável.

Os fones ainda tão na minha calça. Coloco eles. 

-Siri? Você ta ai minha filha?
-Olá, Saul - o da direita ainda funciona.
-Ligue pra emergência.
-Sem sinal.
Merda.

Toc, toc.

Estou na varanda com uma cadeira de balanço e que não é a the cabin.
-Entre, Saul - diz uma voz feminina lá de dentro.
Não faço nada. Penso em fugir, mas do segundo degrau pra baixo não existe nada.
-Eu sei que você está em algum lugar, mas não sei aonde. Então - a porta é aberta - pensei em te encontrar nesse outro nível - uma velhinha que é a cara da Betty White se revela por detrás dela - pra mode prosearmos um teco.

Lareira, mesa de madeira com carne assada, uma cesta de pão caseiro, aquele pão marrom tipo do Outback, vários milhos, sopa de ervilhas, frango frito, purê de batatas e calda de amoras.

-As armadilhas... foi você?
-Uhum. Sinto muito por isso. Mas é como dizem, old rabbits die hard: Hábitos velhos são difíceis de matar.
Me sento à mesa. Pra beber tem vinho e coca-cola normal - pelo menos agora sei que ela não é onisciente e portanto não tão poderosa quando finge ser.
-Você deve se achar uma grande cozinheira.
-Quem, eu? Não não, de forma alguma. É em descrições que eu sou boa. A melhor, haha. Essa sim é minha especialidade.
Cuzona.
-O que é você?
-Bem, essa é uma pergunta um tanto indelicada e difícil.
-Prometo me esforçar.
Ela me olha simpática e escarniamente.
-Muito bem então! Vc. Cê. Ocê. Você. Sucê. Vomincê. Vosmecê. É aqui que eu fico. Depois vêm Vassuncê e Vossa Mercê. Nós, eu e minhas irmãs, somos como a evolução da língua, só que elas, mais belas e jovens do que eu, conquistaram os rapazes fortes e jovens do outro lado do rio, e me deixaram aqui, sozinha, para sempre. Pra você, me chamo Assuncê.

-Isso foi bem abstrato mesmo né.
-Você me pegou, jovenzinho. É uma as poucas coisas que suo a camisa pra traduzir. Caminho por aqui desde a Guerra Civil, com passos largos, mas suas traqueias e tímpanos ainda são um mistério pra mim... um delicioso mistério... mas, ah, venha, por que não prova o suflê de alho poró com castanhas?
O prato de sabor duvidoso surgiu na minha frente.
-Viu. Não posso evitar, hehe. Aqui - ela bota no meu prato - indistinguível da realidade...
-E o que você quer?
-Primeiro, eu gostaria que você provasse algo, porque sei que está faminto.
-E depois...
-Fazer você refletir sobre seus atos e devorar você.
-E se eu aprender a moral de tudo isso...
-Nananinanão, eu ainda vou te abater e ordenhar seu sangue da pior forma possível.
-Não se eu chutar essa sua bunda murcha inominável.

-CAAAAAAI DENTRO ENTÃÃÃO.
Por um instante o lápis dela escorregou da mão e o texto escapou da linha, abrindo um buraco pelo qual pude enxergar por entre a ilusão. O que vi foi um espírito antigo como o tempo possuindo a carcaça de grafeno.

-Calma, Justine, calma - ela disse pra si mesma. Acho que deve ter sido a pobre alma que ela absorveu antes da minha.

-Sua namorada terminou com você depois de saber do grupo secreto do qual você fazia parte no Facebook, seu grupo de filhos da mãe misóginos, e ela ficou mal na roda de amigos de vocês como se fosse a louca sem coração que te deixou sem explicação, explicação que ela guardou pra si ao invés de te expor nessa mesma roda. Veja, eu estou pouco me fodendo pras mulheres que você desrespeitou. Pros comentários que você fez, as fotos que você compartilhou, etc., etc., etc. O que você faz lá fora não é da minha conta. O problema é o que você fez e faz aqui dentro - e deu duas batidas na testa -Sua cabecinha não é uma terra sem-lei, Saulinho. Não é sua gaveta de cuecas onde você pode guardar suas revistinhas à salvo do mundo exterior. Nem seu armário onde você pendura seus pôsteres. Há consequências. You have been a very very bad bad girl, Saulo, and deserve to be punished.

A saliva escorreu pelas presas, que eram armadilhas de urso, e as mangueiras de ordenha saíram debaixo da mesa se contorcendo, sibilando, babando e urrando.

Mais uma vez, o disfarce voltou ao normal.

-Acho que já deu dessa liçãozinha de moral de He-Man do mundo invertido. Você me acompanha até a porta?
-Uma última coisa, Saul querido - ela se enrolou no cachecol vermelho-dourado como seu pelo, e abriu a porta - você acredita na crueldade da simulação?
-Não, senhora.
Agora ela esfregava as mãos em luvas de dálmata.
-Então eu mostrarei benevolência alguma.

Abro os olhos. Estou no mesmo lugar. Três tiros cheios. Com sorte sobrevivo até a Pokébola me dar um quarto e último.

-Siri?
-Sim, Saul?
Engatilho a espingarda e dou play em Seven Nation Army.
-Vamos matar essa filha da puta.

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